quarta-feira, 11 de junho de 2008

Real Colorado: um pouco da história do Marapé

Muitos são os fatores que contribuem para que um determinado bairro ou cidade tenha entre seus habitantes um forte senso de identidade e sociabilidade. No caso específico do Marapé, observa-se que muitas das famílias residentes encontram-se no bairro por diversas gerações, sendo responsáveis ao longo dos anos pela criação de diversas instituições culturais, esportivas e sociais, reforçando ainda mais os laços comunitários entre seus moradores e estabelecendo relevantes canais de relacionamento com a cidade.
Dentro desse referencial não poderíamos deixar de citar o Libertário F.C., o Ouro Verde F.C., o G.R.E.S. União Imperial, e o Real Colorado Praia Clube, instituições financeiramente modestas que tem seu grande patrimônio no capital humano de seus integrantes e na forma de organização coletiva e lúdica de suas atividades. Tratam-se, sobretudo, de instituições fundamentais na geração de símbolos e valores da própria comunidade, que no dia a dia de suas existências preservam e escrevem a história da própria cidade, de seu bairro e de seus moradores.
Se ao falarmos do samba e do carnaval em Santos, não poderíamos deixar de citar as animadas rodas de samba do Ouro Verde e os contagiantes desfiles carnavalescos da União Imperial, não poderíamos falar sobre o futebol amador santista sem destacar a trajetória do Real Colorado Praia Clube. Muito além das glórias obtidas nas areias, gramados e quadras da cidade, essa agremiação esportista teve como maior conquista de sua história o desempenho de um papel sócio-educativo fundamental na formação humana de milhares de jovens que vestiram o vermelho e branco de seu uniforme.
Quando no início dos anos 70 alguns jovens que disputavam suas “peladas” pelos campinhos e ruas do bairro decidiram montar seu próprio time, certamente não tinham a dimensão que esse “time de rua” perduraria suas atividades por décadas, se transformando num pólo aglutinador de moradores e esportistas do Marapé e da cidade. Montado então o time, seria necessário arrumar um uniforme, o que se tornou possível graças ao pai de um dos jogadores, Sr. Salvador Martinez, que conseguiu o primeiro uniforme do clube junto a representantes da indústria farmacêutica.
Batizado inicialmente com o nome de Real Praia Clube, menção ao extinto clube que cederá o uniforme, esses jovens logo disputariam seu primeiro campeonato. Meses depois, participariam do campeonato dente-de-leite, categoria recentemente criada pelos cronistas esportivos Roberto Petri e Ely Coimbra, que ganharia um torneio organizado pelo saudoso jornal Cidade de Santos. No entanto, diferente de São Paulo onde essa categoria jogaria pelos gramados da capital, em Santos, as partidas aconteceriam nas areias do Gonzaga.
Ainda que um tanto desajeitados devido ao tamanho adulto dos uniformes, os meninos do Marapé não fariam feio. Jogando contra equipes muito mais antigas e organizadas, conseguiriam ir para a fase final do torneio, obtendo um honroso 4º lugar. Com isso, não tardaria para que muitos jovens do bairro ingressassem no “time de rua”, sendo que poucos anos depois, o Real disputaria esse mesmo torneio com 4 equipes e até torcida organizada feita pelos próprios moradores do bairro, com direito a bandeiras, papéis picados e batucada para comemorar a entrada ou gols realizados pelas equipes.
Alguns anos mais tarde, o clube teria acrescido a palavra Colorado ao seu nome. Em 1978, o Real Colorado Praia Clube tem seu nome registrado em cartório, ficando como data oficial de fundação o dia 17 de abril. Ao longo desses 30 anos de atividades, passariam pelo clube alguns nomes que ganhariam consagração nacional, como o zagueiro Fernando (Santos, Vasco da Gama, Flamengo, Atlético MG), Enéas (Santos), Totonho (A.A. Portuguesa, Santos e Paulista de Jundiaí), Penha (A.A. Portuguesa), Marcos Amaral (A.A.Portuguesa), Edmílson (A.A.Portuguesa e clubes de Portugal), Mourão (E.C. Juventus e clubes de Portugal) e Serrano (Juventude /RS).
Atualmente, o Real Colorado Praia Clube mantém ainda um grande número de participantes em seus torneios internos, seja de futebol, de carteado ou dominó. O tradicional treino do sábado a tarde, tornou-se um gratificante momento para que diferentes gerações vinculadas ao Marapé e ao clube se encontrem nas areias próximas ao emissário submarino, em frente a ilha Urubuqueçaba, e depois se confraternizem no bar do Orlando, local que em suas paredes guardam os troféus, conquistas e fotos de diferentes épocas do clube.
Tudo isso, tornou-se nada mais que um excelente pretexto para que dezenas de pessoas praticantes ou não de esportes se encontrem, comemorem seus aniversários e compartilhem suas experiências do cotidiano. São professores, engenheiros, advogados, dentistas, enfermeiros, bancários, porteiros e mecânicos que se permitem ao lazer e o encontro entre amigos nas tardes de sábado. Afinal, amigos que tiveram sua formação humana substanciadas na relação de amizade, solidariedade e companheirismo proporcionado pela vivência no Clube. Homens e jovens que carregam em si o orgulho de pertencer ao Real Colorado e de viver ou ter parte significativa de suas histórias no bairro do Marapé.

Saturnino de Brito: um homem a frente do seu tempo

“Chorai, cidades do Brasil! Vós tão numerosas que fostes saneadas por ele, chorai vosso benfeitor! E vós que esperáveis sê-lo, chorai o engenheiro e higienista incomparável que vos teria indicado a melhor solução. Nós, nós choramos um grande amigo da Associação de Higienistas e Técnicos Municipais da França – da qual foi membro de honra, desde a sua fundação – que escreveu frequentemente na revista “La Technique Sanitaire” e deu, aos técnicos da França e do mundo inteiro, lições e exemplos magníficos. Nós choramos um grande amigo da França, e eu choro um amigo muito caro, que por modéstia se dizia meu discípulo, mas que era um mestre eminente, tendo feito muito mais que eu mesmo...” (1)

Com estas palavras, o ilustre engenheiro e médico francês, Dr. Ed. Imbeaux, manifestava seu pesar diante da morte de seu amigo, o engenheiro sanitarista Saturnino Rodrigues de Brito, ocorrida no dia 10 de março de 1929. No Brasil, muitas e justas homenagens foram realizadas, sobretudo, nas cidades que tiveram nos trabalhos de Saturnino de Brito os fatores necessários para o desenvolvimento de uma melhor qualidade de vida de seus habitantes.
Em Santos, somente em 13 de março seria publicada uma pequena nota no jornal A Tribuna sobre o seu falecimento. Curiosamente, pouco antes, no dia 11 de março, e possivelmente sem saber de sua morte, o jornal apresentaria uma matéria enaltecendo a construção dos canais e sua ação saneadora, ao mesmo tempo em que ressalta a beleza das avenidas e cobra das autoridades municipais maiores cuidados com a conservação e manutenção dos mesmos.
Mais tarde, em reconhecimento ao precioso trabalho prestado pelo grande engenheiro e sanitarista, a Câmara Municipal, em sessão do dia 6 de maio, aprovaria o Parecer nº 17 da Comissão de Justiça e Poderes, atribuindo o nome de Saturnino de Brito a uma rua já existente no bairro do Marapé. Outras homenagens seriam prestadas somente anos depois, em 1964, por ocasião do centenário de seu nascimento. (2)
Se morto Saturnino de Brito recebeu as devidas homenagens, em vida, a relação entre Saturnino e a Câmara Municipal não foram das mais tranqüilas. A polêmica gerada por suas propostas urbanísticas para a cidade, principalmente por contrariar os interesses de proprietários de terras que seriam desapropriados para a realização das obras sanitárias, renderia nas páginas dos jornais um amplo debate sobre o assunto.
Designado pelo governo do Estado de São Paulo para coordenar a Comissão de Saneamento de Santos, a partir de 1905, Saturnino inauguraria sua primeira grande obra em 27 de agosto de 1907, com a entrega de trecho do canal 1, canalizando parte do então chamado Rio dos Soldados. Dos 9 canais previstos em seu projeto, o último a ser entregue seria o canal 5, em 1927. Saturnino, no entanto, já não residia mais em Santos, indo para outras cidades desenvolver suas ações saneadoras.
Em seus mais de trinta anos de trabalho como engenheiro sanitarista, atuou em dezenas de cidades brasileiras. Por ocasião de sua morte, prestava serviços no estado do Rio Grande do Sul, quando viajara para supervisionar as obras sanitárias de Pelotas. Ao longo de sua carreira profissional, Saturnino de Brito realizou alguns estudos, além de criar diversos equipamentos para a rede de esgoto e abastecimento de água, muitos deles aproveitados em países como Estados Unidos, França e Inglaterra.
Conta-se que nunca patenteou suas descobertas, nem jamais se recusou a transmitir seus estudos e descobertas a quem tivesse interesse. No projeto sanitário de Santos, como bem lembra, a professora de História e Dra. Wilma Therezezinha de Andrade, conseguiu realizar os trabalhos com menos recursos do que os previstos inicialmente no orçamento. (3)
A preocupação humanista de Saturnino de Brito estiveram presentes em toda a sua carreira profissional. Quando jovem e recém-formado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, conseguiu seus primeiros empregos em empresas ferroviárias. Trabalhou inicialmente no estado de Minas Gerais e, posteriormente, na cidade de Quixeramobim, no Ceará. Nesta cidade, em relatório feito em 1892, já se denotava a preocupação de Saturnino com o homem nordestino, sendo a estrada de ferro, (sem vírgula) vista como um precioso instrumento para gerar melhores condições de vida na população.
Em 1893, procurado pelo Sr. Luiz de Moraes Barros, Presidente da Câmara Municipal de Piracicaba, foi convidado para realizar um estudo cujo fim seria a construção de uma rede de esgotos para o município iniciando, assim, sua gloriosa carreira de sanitarista. Se as ferrovias brasileiras perderam sua genialidade, nossa engenharia sanitária, ainda em seus primórdios, ganhou um dos seus maiores profissionais. (4)
Em seus mais de trinta anos dedicados ao trabalho, proporcionou benfeitorias em dezenas de cidades que, antes de suas obras, eram constantemente castigadas por epidemias das mais variadas. É, sem dúvida, uma importante personalidade na história da saúde pública brasileira.
Para nossa cidade sua contribuição foi inestimável. É bom lembrar, que a Santos de hoje é, em parte, a cidade que Saturnino idealizou e construiu nas primeiras décadas do século passado. Os canais, além de saneadores, deram uma identidade muito particular para a cidade servindo, inclusive, de referência geográfica para os santistas. Afinal, você leitor, conseguiria imaginar Santos sem Saturnino de Brito?

Para saber mais sobre Saturnino de Brito leia os artigos “Centenário dos Canais: a obra de Saturnino de Brito“ da Professora e Dra. Wilma Therezinha de Andrade e “ Centenário dos Canais de Santos“ do Professor e Arquiteto Fábio Eduardo Serrano, ambos publicados neste site.

Paulo Renato Alves é pesquisador e psicólogo.

(1) Jornal A Tribuna de 19/07/1964. Discurso do prof. Eduardo Riomey Yassuda.
(2) Jornal A Tribuna 14/07/1964. Idem.
(3) Artigo: Centenário dos Canais: a obra de Saturnino de Brito
(4) Jornal A Tribuna.